segunda-feira, 30 de março de 2009

Temática para o 2o semestre de 2008

Para além dos destinos da anatomia ... As novas singularidades contemporâneas.

“É indispensável deixar claro que os conceitos “masculino” e “feminino” cujo conteúdo parece tão inambíguo à opinião corriqueira, figuram entre os mais confusos da ciência...” Sigmund Freud

Como disse Freud, ninguém nasce homem ou mulher; percorremos um caminho para a construção de nossa sexualidade, que necessariamente não será expressa apenas pelo gênero ao qual anatomicamente pertencemos.

Somos inscritos em uma ordem simbólica, mesmo antes de existirmos. A linguagem e o desejo inconsciente dos pais nos precedem, marcam e determinam a posição do sujeito na ordem familiar. Nossos corpos nos remetem ao real e uma forma de existência determinada pela anatomia, que segundo Maria Rita kehl é “a mínima diferença”.

A cultura nos obriga a uma expressão da sexualidade segundo os padrões vigentes e aceitos pela sociedade. É uma negação de que cada sujeito é marcado pelos caminhos de sua pulsionalidade. O exercício da clínica psicanalítica nos faz ampliar o entendimento para auxiliar o sujeito na busca de sua verdade.

Katia Santos
Diretoria de ensino

O Feminino: por que se escondes?

Com este texto pretendemos mostrar um pequeno resumo dos tempos passados, abordando a mulher em seu modo de existir como sujeito singular de suas ações. Contrapondo-se a um novo referencial de sua contemporaneidade, que irá apontar para uma realidade de sua existência atual.



Será que as mulheres ainda transitam nas ruas das chamadas Amélias?

Então vamos fazer um vôo através dos tempos, retrocedendo ao passado com pequenas rasantes. Iremos antes de Cristo, onde veremos que a mulher sofreu grandes conseqüências entrelaçadas aos valores culturais, que se remetem aos aspectos biopsicossocial, apontando para uma rede tecida de cultura bastante preconceituosa. Assim essa mulher não podia expor o seu corpo e muito menos expressar livremente seus sentimentos, seus desejos, suas dores, suas aptidões. Diante de todas essas questões, só lhe restava ficar contida numa “caixa de reserva” o que poderia ser confundido com um reservatório, uma represa, sim, pois essa mulher era considerada um objeto sem valor, sem voz, que mal poderia comparecer ao espaço público, ou seja, fora do domínio da casa, em momentos de rito sagrado e de funerais em algumas culturas, única ocasião que poderia estar se mostrando ao público, mulheres casadas que se submetiam ao domínio masculino, tendo inclusive de ficar separadas dos homens em ambientes comuns a casa. Não era permitido às mulheres participar de conversas juntamente com os homens, o que as fazia ficar segregadas, num lugar chamado gineceu.

Percebemos que o homem tende a se distanciar do sexo feminino, numa determinada época. Época esta que era vivida de acordo, com os padrões de evolução cultural vigentes. O pensador Aristóteles teria afirmado “que a mulher quando menstruada tinha poder de empretecer os espelhos”. (Muraro, 1997, p.113)



Em contrapartida as mulheres pobres e escravas parece que usufruía de menos repressão do masculino, pois estas transitavam no espaço público com mais liberdade.

A mulher estava num processo de assujeitamanto total desde os primórdios da história. Devido a referida situação não podia exercer a cidadania, pois lhe era furtado o direito de votar, de escolher, e de expressar suas vontades, seus desejos.

Estava à mercê de um poder masculino, onde as ordens eram ditadas de forma verticalizadas. Essa mulher mostrava o seu existir através de seus empreendimentos domésticos que se alastravam entre outros compartimentos e objetos da casa, como alcovas, cozinha, cuidados com os filhos, com o marido e a própria casa em si. A outra face de sua existência era vista em um papel voltado para maternidade, onde mostrava algo ligado ao instinto, que acabava colocando-a como simples reprodutora da espécie humana, ou seja, a maternidade apontava um papel preponderante neste cenário. Por outro lado a sexualidade era relegada a segundo plano, algo que não poderia ser mostrado nem tão pouco falado. Uma vez calada, o sintoma eclodia rebelando-se por meio de ato, só lhe restando sobrevir rótulos, que a medicina ainda reforçava, através de diagnósticos como “mulheres com ataques de nervos”, “mulheres nervosas”, entre outros estereótipos categóricos como a “mulher frígida”, dotada de pouca razão, demonstrando sentimento de inutilidade, passividade, frágil, que não pensa e que executa os mandos desse personagem masculino que ao oposto dessa mulher, é visto como homem forte, viril, ativo e dotado de razão. Enquanto a mulher muitas vezes, não tinha direito de ser chamada nem mesmo pelo seu próprio nome e sim como “ Ah! É a mulher de Fulano”..., mostrando de certa forma o quanto essa mulher era reconhecida como propriedade e submissão do marido, até porque permanecia oculta naquele ambiente privado – a casa. Assim sendo se entranha nas rotinas domésticas cotidianamente em detrimento de um saber que só muitos anos depois pode ser alcançado. O estudo era algo que não tinha preponderância na vida feminina, sendo inclusive lhe furtado o direito de ingresso em faculdades.

Com o avançar dos tempos, se antes a mulher era vista como objeto de submissão não poderia expressar seus sentimentos e desejos, como poderia saber de seus direitos? Será que poderíamos nomeá-las como ser falante, diante de tanta submissão, onde até o direito ao voto lhe era suprimido?

A trajetória feminina vai avançando entre movimentos revolucionários que envolvem mudanças significativas para a mulher. Entre outros avanços, na década de 60 ocorre algo novo, de notável importância neste território feminino. Com o progresso da medicina, ocorreu um grande achado, o advento da pílula anticoncepcional. Podemos dizer que este funcionou como uma chave que veio abrir a porta da sexualidade feminina, até então bastante fechada, reprimida. Outro fator importante era o medo que a rondava em função de uma possível gravidez indesejada. Tal fator por sua vez lhe tolia o direito de exercer a sexualidade com mais liberdade.

Parece que neste momento a mulher começa a se despontar não mais como objeto de submissão da esfera masculina. Se há alguns anos atrás, as feministas estavam numa luta arraigada em prol de igualdade sexual; atualmente nos deparamos com outra face da mesma moeda, ou seja, parece que o paradigma que até então se manteve estagnado por algum tempo, hoje tende a fluir de forma que vem marcar a diferença, porém apontando para um horizonte de possibilidades e pluralidades que abarca potencialidades e não aquela diferença que vá anular a desigualdade entre os sexos.

Não podemos esquecer que uma grande parte desse universo feminino, obteve conquistas ao longo dos anos, subindo e descendo em palanques. Agregadas em movimentos contestadores, contra um pensamento voltado para a cultura do masculino, que naturalmente lhe deu grandes troféus. Prova disso é que atualmente temos mulheres em quase todas as esferas de trabalho, inclusive na área política e militar.

Essa participação ativa do feminino se alavancou em movimentos contestatórios para atingir a esfera pública e o mercado de trabalho. Assim sendo será que podemos pensar numa “nova” mulher? Ou será que temos aí uma mulher atravessada por um mal-estar que de forma oculta lhe impede de dizer: ”Ah! Estou cansada de tudo isto” - duplas e triplas jornadas de trabalho, longe dos filhos que ainda são pequenos...

Agora não é o masculino que lhe cobra uma submissão, e sim o cargo, a posição, o lugar que tanto almejou chegar numa divisão hierarquizada da esfera social.

Com essa nova posição, ocupação de cargos que exigem responsabilidades, jornadas intensas de trabalho, como fica suas questões subjetivas, o seu mundo interno, a sua área psíquica, o seu existir como sujeito inscrito numa história de vida envolvendo vários papéis nas suas atuações profissionais?

Será que é tão fácil deslizar de um papel para outro? Ora ser mãe, dona- de casa, ora ser outro profissional, mulher guerreira, a provedora que também tem que mostrar suas potencialidades, qualidades sem esquecer de dar conta da cama à noite quando chega mesmo cansada? E na hora de deixar para atrás os filhos, a casa sob cuidados de terceiros? Será que tudo aquilo que o ser humano traz consigo ao longo de sua existência como construção psíquica, herança sócio-cultural, não tem papel relevante nestes momentos?

O que vemos é que a mulher alcançou o espaço público, entretanto há uma grande carga de tensão, insatisfação para conciliar esses aspectos do público e do privado, pois ela não deslizou totalmente desse lugar, da casa , das vinculações intimas com a cozinha, ou seja , os aspectos domésticos ainda estão rondando o seu ser, mesmo lá fora no seu exercício profissional. Há uma preocupação constante com o filho que ficou em casa, se está bem cuidado ou não, se tomou o remédio, se a febre baixou, enfim como deverá estar se sentindo?

Assim é esta super mulher contemporânea, autônoma, independente economicamente, porém vive um conflito, uma tensão que sobrevém uma culpa. Será mesmo tão fácil abrir mão de tudo aquilo que conquistou sob as rédeas fortes dos comportamentos masculinos, versus a fragilidade do feminino, diante de uma cultura carregada de costumes, valores que se torna difícil a quebra de padrões estabelecidos? São questionamentos que nos remete a reflexão de uma forma bastante ampla, pois tudo isto aponta para uma área difícil de transitar, o subjetivo, o psiquismo do ser humano



Como já foi falado acima o sexo feminino era visto por um viés bastante preconceituoso, segregada a um horizonte oculto, obscuro, relegado ao plano de uma inferioridade, que colocava a mulher num patamar de submissão como um objeto de assujeitamento.



Será que poderemos atrelar uma articulação do masculino versus feminino com o Eu Ideal (ou Ego Ideal), contrapondo ao Ideal de Ego?



Segundo Laplanche e Pontalis (1998, p.139) o Ego ideal é “formação intrapsíquica que certos autores diferenciando-a do Ideal de Ego, definem como um ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil”.



Uma vez que o masculino é abordado no texto de forma dominadora sobre o feminino - podemos pensar que forma onipotente é esta que acaba sufocando o sexo feminino? E que por sua vez impõe ao Outro um desejo que está aquém desse Outro, e que, porém deixa ser capturado para atender a demanda de imposição exacerbada do sujeito narcisista que é representado por este homem dominador, autoritário, que tem como representante da Lei um superego, que segundo a Maria Ângela Santa Cruz, autora do texto - “O Paradoxo da Saída Feminina na cultura Contemporânea”, onde diz “que o superego, além de ser a instância responsável pelas proibições, também é o agente responsável pelos imperativos culturais nos sujeitos individuados”. Por este viés, o sujeito masculino estaria atuando numa perspectiva de provocar na mulher um comportamento de submissão que atenderia à expectativa dominadora desse homem e ao mesmo tempo parece que o feminino estaria engendrado por um Ideal de Ego imposto num cenário onde o autor dessa cena passa ser o homem enquanto sujeito de dominação feminina.

Caminhando pela via de uma questão que me parece não ser tão somente uma questão, mas algo mais profundo, mais internalizado, que irá apontar o feminino para uma esfera mais longínqua no âmago do seu existir.

Será que podemos pensar ainda que neste cenário onde o feminino se dobra e atua diante de uma forma imposta por uma autoridade, envolta numa capa narcísica, estaria apontando para um Falso Self (Falso Eu) que diante dessa atuação deste ator chamado Eu Ideal, impôs suas leis e a atriz se investiu com uma máscara da fragilidade e com muita sensibilidade abarcou o papel sem usar da Razão e ainda disse: Obrigada! E só muito tempo depois é que começou a perceber o significado dessa cena.?

Se reportarmos a uma linguagem Winnicottiana, será que poderíamos dizer que ela fora travestida por um belo Falso Self? Ou seja, o eu verdadeiro estaria encoberto por uma capa protetora de defesas que não consegue reagir, senão àquela que lhe é imposta de forma á coloca-la num lugar de objeto de submissão, de inutilidade.





Winnicott (2000, p.389) nos diz que:



Com o eu verdadeiro protegido, surge um eu falso, construído sobre uma base de submissão defensiva, aceitação da reação à intrusão. O desenvolvimento do falso eu é uma das organizações defensivas mais bem – sucedidas, destinadas a proteger o núcleo do eu verdadeiro, e sua existência tem por conseqüência a sensação de inutilidade.



De acordo com o questionamento acima, pensamos que sim, pois, aliás, foram anos após anos, o caminhar das Amélias. Caminhar esse marcado por sofrimentos, submissões, dores e o seu existir calada, mas que no decorrer dos anos conseguiu de alguma forma dar um certo alívio, pois minimizou o fardo do Falso Self, que outrora era “figura” simbiótica constante consigo próprio.

Assim, finalizando, percebemos que através do deslizar das arestas dos desdobramen tos de comportamentos feminino versus masculino, apontou o homem para uma nova direção. Seria uma adaptação nesse imaginário social, que fora tecido através de uma lógica do feminino, que até então, tudo lhe dava às mãos. Hoje parece que mesmo conflitada, angustiada, a figura feminina, tenta ter um existir diferenciado, com um fardo menos pesado para transitar na contra-mão das chamadas Amélias, que outrora, funciona vam mais como uma serva da figura do masculino, do que um sujeito digno de seus próprios desejos, suas escolhas e suas ações.





Referências Bibliográficas:



KHEL, M. Rita. 2006. Deslocamento do Feminino, Imago.

Cadernos de Psicanálise- CPRJ- 2005, Masculino/Feminino: A Clinica dos Novos Paradigmas.

MURARO, R Marie. 1997. A Mulher no Terceiro Milênio. Rio de Janeiro. Editora Record: Rosa dos Tempos.

LAPLANCHE & PONTALIS. 1998. Dicionário de Psicanálise.. Rio de Janeiro.. Editora Martins.

NERI, Regina. 2005. A Psicanálise e o Feminino: um novo Horizonte da Modernidade. Editora. Civilização Brasileira.

WINNICOTT, WD. 2000. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Imago





Por: Teresa de Paiva Souza - teresadepaiva@gmail.com